Franz Kafka
'' Tais obras são como espelhos; se um macaco olhar para dentro delas, nunca poderá ver um apóstolo.''
Lichtenberg
Quando Deus criou o primeiro homem, da atual humanidade, representado por Adão, proibiu-lhe comesse o fruto da árvore da noção do bem e do mal. Tendo-o desobedecido, por indução de Eva, o homem incorreu em pecado e, expulso do seu lar natal, foi condenado a conquistar o sustento com o suor de seu rosto. Mais do que o castigo do trabalho, que lhe seria, afinal, maravilhoso instrumento de progresso e aprimoramento espiritual, ficou como um estigma no homem a inquirição permanente e angustiante de sua mente, vivificada pela árvore da vida, cujo fruto ele comera. Assim, á fome de alimentos, que era necessário satisfazer, juntou-se a sede de conhecimentos, mais atenazante, mais premente, mais angustiosa, porque é a única que mantém o homem na sua dignidade de filho de Deus.
Imerso, porém, na dor e no sofrimento, perdido nesse mundo
da relatividade das coisas, em que vive, dividido pelas infinitas
particularidades de cada pensamento criador, solicitado pela multiplicidade dos
aspectos de uma mesma verdade, vendo fragmentar-se em miríades de concepções
diferentes as criações da mente humana, num remoinho eterno de morte e
ressurreição, num constante vir-a-ser que supera todas as fragílimas previsões
do intelecto, eis que o homem perdeu a noção exata de sua culpa. Por que fora expulso
de seu lar? O que lhe acontecera, realmente, naquela manhã junto à árvore da
vida? Deus criara o homem para que ele dominasse sobre toda a criação, como lhe
diz expressamente; onisciente, não podia ignorar os acontecimentos futuros e,
certamente, conhecia ao seu preceito. Acresce que a proibição foi dada ao
homem, apenas, antes da criação da mulher; daí o fato de estar mais vulnerável
à tentação. E foi através dela que o homem pecou. Sentem-se ambos nus e
envergonhados e escondem-se de Deus. Juntamente com a noção do Bem e do Mal os
seres recebem um novo e importuno habitante das profundas cavernas de sua alma:
o temor.
A noção exata de sua culpa, a razão primacial da queda, foi
perdida pelo homem, através dos séculos. Caído no reino fragmentário das idéias,
a própria imagem de Deus, único, fragmentou-se em tantas imagens quantos eram
os temores humanos. Quebrada a unidade da criação, o homem entregou-se a
multiplicidade, e, em plena orgia dos sentidos despertos, deu-se ao politeísmo.
Ainda hoje, vemos que Deus é venerado de modos diversos em cada agrupamento
humano, e que os homens dividem-se, lutam, conflitam-se, não por emulação, mas
pelas suas próprias idéias a respeito do Criador; para chegar até Ele, com toda
a pureza de alma, numa autêntica volta do Filho Pródigo, é preciso o
beneplácito de tantos embaixadores e secretários, que a existência se escoa e o
homem acaba de perdendo nos intricados meandros das noções em conflito.
Temos figurado, portanto, o Pai, em todo o seu poder quase
tirânico, e em toda a majestade de eterno absurdo de negar, consentindo, de
castigar beneficiando. Porque a proibição do fruto do conhecimento foi um
incentivo a desobediência, e o castigo foi um beneficio. Sem essas duas coisas,
o homem estaria na condição dos animais desprovidos de raciocínio, ou de
intelecto tão primário, que certamente não evoluiria de sua condição de ser
criado a ser criador. E o castigo foi um beneficio, porque regando a terra com
o seu suor vai o homem colhendo os frutos do conhecimento e assim recompondo em
si a primitiva verdade de sua criação. Somente a verdade poderá livrar o homem
das divisões e dos particularismos em que sua existência se perde; daí a
afirmativa evangélica de que ''a Verdade vos libertará''.
Temos, também, a figura da Mulher, que pode ser a esposa, e
ainda a Mãe. E entre eles o Homem, sujeito à tentação e ao castigo; aceitando a
responsabilidade de uma culpa que lhe é imposta, construindo o seu mundo
governado pelo temor, refazendo a criação com os frutos de sua inteligência
despertada, e recompondo em sua alma a figura do Pai, que ele venera mesmo
quando parece desprezá-lo.
Na raiz da criação temos, portanto, o absurdo. É claro que
as limitações de nossa mente não nos permitem deslindar a natureza desse
absurdo ou então eliminá-lo através da lógica dos fatos. A imaginação é assim
uma planície vasta em que a inteligência do homem vagueia, insone e
desesperada, de hipótese em hipótese; e quando ao absurdo de juntam o temor, a
inibição, a timidez, configurando o quadro clínico de uma imaginação arrebatada
e doentia, então visões se sucedem, arrastando para a irrealidade dentro do
real, criando mundos particulares dentro do mundo real, fazendo com que o
homem, cuja alma foi tocada pelo fogo da verdade, se isole dentro de seu mundo.
O Pai é ponto de referência. Está colocado no ápice da criação,
dele dimanam todas as coisas criadas, e para ele convergem todos os seres, seja
para negá-lo em parte ou no todo, seja para amá-lo parcial ou totalmente. As
interpretações humanas sobre o seu poder e glória, criaram as castas
sacerdotais e estas as religiões. Milhares de caminhos abriram-se aos pés dos
homens para levá-los até Deus, ou através da humilhação da vontade, que se
anulava para que em seu lugar vigorasse a vontade divina através do insensato
orgulho de igualar-se ao Criador, fazendo-se figura sua na terra, ou através da
exaltação dos sentidos da inércia da contemplação mística, ou nos intricados
raciocínios da teologia e da filosofia. E entre Deus e os homens
interpuseram-se milhares de embaixadores, orantes, oráculos, santos, anjos, espíritos,
e de tal modo se desvirtuou ritos, aos templos, às celebrações faustosas, mais
vezes a encontramos no tugúrio humilde, onde luz vigilante a fé sem mácula.
Também a Mulher, seguindo a sua destinação primeira,
tornou-se o ponto principal do interesse do Homem. É a mãe que aleita e amolda
o caráter; é a esposa em que depositamos as esperanças da perpetuidade e os
sonhos de fugaz felicidade terrena. Contudo, com mais freqüência, é o centro de
todos os conflitos passionais que amarguram a nossa alma, porque ela simboliza
a família e a sociedade, bases vitais da sobrevivência da personalidade, e está,
como no início de toda a história humana, sujeita às tentações e predisposta ao
pecado.
( Continua.)
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